“É pelo mar que se começa a geografia” Jules Michelet
Só quem tem garras é que precisa de Paraíso. Catarina Castel-Branco encontrou o seu nas praias desertas da ameaçada Costa Vicentina. Por isso, o diálogo contínuo com a paisagem da Zambujeira do Mar mais do que o ritual é um veículo de metamorfose. À maneira dos mestres orientais que se transformam primeiro em onda para depois a pintarem, a artista sabe que precisa do luxo do tempo para que através dele se operem os mistérios da fusão panteísta.
“Quando levo um livro para ler na praia, não sei se o leio ou se vejo o Mar” Porque “o Mar não cansa”, o que cansa é o seu desaparecimento dentro e fora de nós. Encher as paredes do atelier com fotografias da paisagem costeira em que se viveu intensifica a alegria de ter estado na sua presença e de nela reconhecer o território matriz de todas as experiências – a grande, bela e dramática oficina oceânica. As trinta pinturas que agora se expõem, na Galeria Diferença dão-nos conta deste encontro muito particular entre uma artista “oficineira” (assim foi baptizada no Brasil) e o maior laboratório natural, tantas vezes representado na História de Arte.
As paisagens marinhas de Catarina, nascidas da experimentação de materiais diversos e, por vezes, inconciliáveis (*o óleo de linhaça com as tintas acrílicas por exemplo*), falam de um Mare officinalis, matérico e antigo: o caldo primordial onde se confundiam o Céu e a Terra “Entre o Mar, a Terra e o Céu não há grandes saltos, quis que tudo vivesse no mesmo plano”.
Não existem também, em nenhuma das obras, tormenta ou naufrágio, como em muitas aguarelas de William Turner, ou nos óleos do pintor seiscentista Matthys Van Plattenberg. Não se vêem as ondas extremas de Katsushika Hokusai, nem marinheiros, nem monstros ameaçadores como acontecia nas gravuras de “Cosmographia Universalis”, 1544, de Sebastien Munster, e muito menos se viaja ao mundo abissal. No entanto, pressente-se o respirar inquieto das profundezas, o segredo de múltiplos corpos em movimento, a provável dissolução das últimas sereias, o sussurro agitado do primeiro bosque de algas. A harmonia à superfície é feita a partir de uma contenção que se intui difícil e efémera.
Uma vez mais, a mestria da gravura, o risco assumido de experimentar, desconhecendo se daí resultam “novas receitas”, o poder de “levar os materiais ao extremo”, controlando-os e sendo ao mesmo tempo surpreendido por eles, traz à obra de Catarina uma sensualidade exuberante e enigmática. A pintura, seja de pequeno ou grande formato, é um corpo com peso, feito de camadas e do cruzamento de técnicas originais, que o artista inventa de propósito para captar o caos e a ordem que o Mar engendra, enquanto maestro e orquestra capaz de fazer e desfazer todos os ruídos do mundo “Cada obra é de uma raça que tento apurar”. De uma “raça” nova porque a pintora propõe-se “não acumular saber” ou seja não repetir anteriores descobertas, nem aquilo que antes constituía a sua identidade.
Contudo, nas obras de menor dimensão, as árvores regressam, mas já não são as romãzeiras de “Muro Murando” (Convento dos Capuchos 2005). Num enquadramento próximo da estampa japonesa, emolduram a paisagem, concebida em azuis, cinzentos, castanhos e brancos de vários tons. Se esta paleta inabitual na pintura de Catarina, evoca algumas cores das obras abstractas de Arpad Szenes, dos anos 60 e 70, há ainda “pormenores que lembram as fotografias de rochas de Carlos Henriques”, essa espécie de petrografia sem intuitos classificatórios, familiar à pintora, e igualmente em exposição na Galeria Diferença.
Partilhando o mesmo espaço, estes dois trabalhos utilizam linguagens e técnicas muito diferentes mas revelam um mesmo gosto pela experimentação e a procura de um substracto anímico que faz da mais invisível manifestação de vida um acto de escrita maior. “Não assino sobre as pinturas, perturbava-me ver o meu sobreposto ao Mar”. É que a artista entende o domínio da Natureza como uma felicidade e um encantamento. Quando o Mar fala o melhor é entrar no seu silêncio.
Nasceu em Abrantes em 1956. Diplomada pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e pela Academia Gerrit Rietveld de Amsterdam. Bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian em 1984 e durante os anos letivos de 1987/88 e 1988/89, enquanto aluna da Academia Gerrit Rietveld. Bolseira do Governo Holandês (NUFFIC) em 1989, enquanto gravadora no Amsterdams Grafich Atelier.
Realizou, entre 1983 e 2022, vinte e oito exposições individuais de gravura, pintura e desenho. Participou em mais de setenta exposições colectivas a convite de várias instituições nacionais e estrangeiras. Em 1987 ganhou o Prémio da Exposição Nacional de Gravura, atribuído pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Cooperativa Gravura. Em 1990 ganhou o Prémio de Edição na II Bienal de Gravura na Amadora. Editada pela “Gravura” em 1988 e 1989. Em 1991/92 foi convidada a ilustrar com gravuras e desenhos da sua autoria os convites, programas e cartazes do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1992 ilustrou os programas e cartazes do Festival Internacional de Música do Algarve e o cartaz de apresentação da Orquestra Gulbenkian. Realizou o cenário da peça “Três passagens para Moscovo”, no Centro Cultural de Belém, em Junho de 1994. Em 2004 foi convidada pela Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva a representar Portugal no 37º Prémio Internacional de Arte Contemporânea de Monte Carlo. Está representada em: Museu de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), Museu V. Moderne Kunst (Amsterdam, Holanda), Museu Martins Correia (Golegã), Museu Armindo Teixeira Lopes (Mirandela).
Coleções particulares: Clube 50 (Lisboa), Coleção da Sociedade de Advogados (PLMJ) e Coleção Millenium BCP. Está representada em coleções em Portugal, Brasil, Bélgica, França, Itália, Espanha, Holanda, Luxemburgo, U.S.A., Japão e México.