A primeira exposição da instalação "Passo a Passo" de Irene Buarque, em Março de 1983 na Galeria Diferença em Lisboa, era acompanhada por um desdobrável verde no qual um poema da artista tinha sido impresso. O texto, que brincava astuciosamente com a palavra “passo”, começava ironicamente sem cabeça – “... Com pés / ... sem cabeça...” – e acabava sem acabar. “Passo a palavra,” escrevia então Irene Buarque, e de facto, em vez de concluir, passava a palavra ao leitor, ou melhor, aos participantes convidados a passear pelo seu trabalho, pisando os diferentes materiais e as imagens que o construíam.
Na exposição “Passo partilhado”, na Galeria Diferença, Passo a passo passa novamente a palavra, desta vez a outra artista, Joanne Grüne-Yanoff, e às suas esculturas, desenhos e fotografias. A instalação de Irene Buarque, aqui recriada, convida a pisar e a sentir, com os pés, os vários materiais orgânicos e inorgânicos que, embora frequentemente subestimados, estruturam a nossa experiência da superfície da terra, e a nossa imaginação plantar, ao passo que as peças de Joanne Grüne-Yanoff, realizadas a partir de 2015, ensaiam uma tensão sutil entre enraizamento e desejo de elevação. Assim, pegadas de cera de abelha sugerem uma ligação orgânica entre humano e não humano, entre passo individual e vida comunitária, entre pisar o chão e atravessar o ar – quase em voo. Em paralelo, nos desenhos da artista, silhuetas texturizadas, não inteiramente humanas, parecem ter sido surpreendidas em processo de transformação, enquanto tentam cortar a sua ancoragem terreste para levantar voo com o movimento dos braços.
Ao explorar passos partilhados, e ao propor passear, esta exposição materializa uma reflexão subtil sobre as formas como movimentos quotidianos ou esporádicos constroem uma relação tanto corporizada como imaginária entre o ficar e o andar, o pertencer a um lugar e o evadir-se dele, o morar e o migrar. “... um desejo de trazer comigo alguns fragmentos dos caminhos percorridos...”, escrevia Irene Buarque, em 1984, a propósito de Passo a passo, indicando que as fotografias na instalação tinham sido tomadas em viagens por vários países, incluído o Brasil e o Japão – imagens e memórias que este trabalho sutura num único ambiente, fragmentado e ao mesmo tempo generosamente aberto à experiência de quem quiser percorrê-lo. Ao renovar esta peça, a artista incluiu materiais que fazem parte do seu presente e que geram um mapa atualizado dos percursos que Passo a passo condensa e partilha. Em diálogo com este ambiente, as obras de Joanne Grüne-Yanoff perspetivam os movimentos do corpo, e o seu andar, de forma poética, através da figura imaginária de Cassandra, que manifesta a sua presença de vários modos na obra da artista, ora pelas suas pegadas, ora pelas suas ações ou pela sua imagem. Como metáfora, Cassandra, profetisa que não consegue ser ouvida, incorpora a interdependência entre o enraizamento e a possibilidade de deslocação e transformação, real ou imaginária, enquanto fatores estruturantes do nosso estar no mundo. Sem conseguir passar a palavra, Cassandra manifesta-se pelo corpo, pelo movimento da matéria, embora anseie por uma existência etérea, elevada no ar, que transcenda a atomização do indivíduo e manifeste a multiplicidade do colectivo.
O passo partilhado de Buarque e Grüne-Yanoff, para além das multiplicidades metodológicas expressas na obra de ambas, é transformador pelo diálogo que enceta entre um materialismo terreno e a imaginação metafórica, aqui entretecidas. Mas também pela notável relação com a natureza, fonte primária de transformação pela sua força indomável. Experiência sensível e sensorial, em contraponto com a construção racional. Ambulo ergo sum (Anne Moeglin-Delcroix) – ando, logo sou, em substituição da formulação cartesiana penso, logo existo. Ou, no caso concreto desta exposição e das obras aqui apresentadas, ando logo sinto. E assim transformo.
Giulia Lamoni & Márcia Oliveira
Joanne Grüne-Yanoff é uma artista transdisciplinar sueco-americana com base em Estocolmo, Suécia, e Filadélfia, EUA. Ela é também a diretora fundadora da FLYG!, um coletivo internacional de mulheres que se dedica a projetos centrados na tolerância e diversidade. Na sua prática, ela examina a relação carregada do indivíduo com o mundo exterior. Esta exploração manifesta-se visualmente no seu trabalho e está ligada a oficinas que ela realiza com populações marginalizadas em todo o mundo, com o objetivo de ajudar a construir ferramentas para encontrar um lar e uma comunidade. As suas instalações exploram a ligação e a transformação criativa como ferramentas de resiliência.
Irene Buarque nasceu em São Paulo em 1943. Desde 1973 que trabalha em Lisboa. É formada em Artes Plásticas pela Faculdade de Artes Plásticas Fundação Armando Álvares Penteado de São Paulo. A sua atividade abrange os diversos campos das artes plásticas, nomeadamente a pintura, a escultura, cerâmica, vidro, instalação e arte pública. Casada com o conhecido arquitecto Nuno Teotónio Pereira. Da sua extensa obra, salienta-se a proximidade que desde sempre manteve com a obra gráfica, através da Cooperativa Diferença (Lisboa) da qual foi membro da direção entre 1979/93 e 2002/08. Encontra-se representada em diversas coleções públicas e privadas, em Portugal e no estrangeiro.