de 24 Maio até 19 Junho 2024

Pauliana 
Valente Pimentel

New Age Kids

Exposições

Espaço Triângulo

Desde 2010 que me debruço, enquanto artista visual, sobrediferentes problemas culturais e políticos que afectam a juventude, focando-me nas questões de género que refundam a identidade dessa comunidade geracional e trabalhando através da fotografia o existir quotidiano de jovens de grupos marginalizados. A minha fotografia trabalha a diferença como potência política e como interface para uma cidadania plena, problematizando a identidade de género e questionando outras formas de existir na diferença que questionam e enfraquecem o poder de um concepção binária e normativa do género. Com a série New Age Kids tornei objeto (e sujeito) da minha fotografia jovens lisboetas que não se identificam com um género normativo.



"Dentro e fora da fantasia: New Age Kids, de Pauliana Valente Pimentel"


A mais recente exposição de Pauliana Valente Pimentel é acolhida pela histórica Galeria Diferença, em Lisboa, com um curioso sentido de justeza, dado que a diferença, justamente, é um tema nuclear do trabalho fotográfico da artista.

Desde o início da sua carreira, Pauliana tem-se centrado em diversas minorias e comunidades marginalizadas, atentando sobretudo em questões identitárias, étnicas e de género, e
demonstrando amiúde um interesse especial pelas gerações mais jovens. Algumas das séries mais impactantes no âmbito deste campo temático são Make-up (2011), Quel Pedra (2014-16) e O Narcisismo das Pequenas Diferenças (2018).

O projecto que a fotógrafa apresenta agora, em 2024, retoma alguns dos tópicos explorados em séries anteriores. Com início em 2022, New Age Kids tem acompanhado a realização de um doutoramento em Arte Contemporânea, no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, no qual Pauliana desenvolve uma tese que articula uma componente escrita e um trabalho fotográfico sobre, nas suas palavras, “jovens lisboetas que não se identificam com um género normativo”.


Esta é a primeira proposta expositiva individual com origem neste projecto. Contudo, alguns resultados já tinham sido apresentados ao público na exposição colectiva “Motel Coimbra 6”, no Colégio das Artes de Coimbra (2023-24), e sobretudo no livro Lisboa Mesma Outra Cidade, publicado pela GHOST em 2023 e com coordenação editorial de David-Alexandre Guéniot. Várias das imagens em exibição na Diferença já tinham surgido nas páginas desse livro, que, para além das fotografias de Pauliana, inclui ainda desenhos, escritos e fotografias da autoria do grupo de jovens que é o objecto deste trabalho.


Escrevo “objecto” por força de hábito. Na verdade, interessa lembrar que, no texto que acompanhou a divulgação inicial desta exposição, Pauliana esclarecia que estes jovens lisboetas são “objecto (e sujeito)” da sua fotografia.

De forma económica e discreta, a artista reivindica, assim, um determinado modus operandi de acordo com o qual as fotografias resultam de um trabalho eminentemente colaborativo, bem como a consequente filiação a uma certa tradição da história da fotografia, de Nan Goldin a Sally Mann — cujo nome vemos na lombada de um livro, numa das fotografias, sobre o qual se deita o próprio filho
de Pauliana (no fim de contas, a família, biológica ou escolhida, também é um dos temas deste trabalho). Ao partilhar a função de sujeito com os seus objectos fotográficos, abdicando assim de uma autoria em sentido romântico e absoluto, Pauliana leva à prática, também, um conjunto de qualidades que têm marcado o seu trabalho: uma generosidade notável e um verdadeiro sentido de humanismo (natural, reactivo, empático, e nunca construído a partir do discurso ou da ideologia) que impedem que o seu trabalho seja meramente temático, bem como lhe vedam (felizmente, creio eu) a pertença à cada vez mais popular categoria da “arte sobre” que António Guerreiro caracterizou no clarividente artigo “A arte ‘bienalizada’”. Contornando os riscos de alguma arte socialmente comprometida que se rarefaz no interesse ou na urgência do seu próprio tema, a arte de Pauliana não é “sobre”. É “com”. E é sobretudo “de”, nessa autoria partilhada com os objectos-sujeitos fotográficos.

Em New Age Kids, a artista acompanha um conjunto de jovens que corresponde, na verdade, ao grupo de relações do seu próprio filho. Estes são jovens queer — gays, lésbicas, transexuais, não binários — actualmente entre os 15 e os 16 anos. A queerness que aqui se revela, porém, é vincadamente distinta daquela que tínhamos testemunhado em Quel Pedra, o que influi na própria natureza das fotografias. A força, a vitalidade e a provocação das fotografias tiradas em Cabo Verde diluem-se agora. Mudaram-se os tempos (passaram cerca de 10 anos), o território (de África para a Europa ocidental) e o enquadramento social dos retratados (das favelas aos condomínios e às escolas de artes em Lisboa). Os jovens de New Age Kids são mais compostos, mais reflexivos, mais cuidadosos na forma como encenam a sua aparência e as suas identidades. A queerness, aqui, é conceptualizada, colectiva e escrupulosamente — mais do que intuitivamente — performatizada. As unhas pintam-se perante pinturas impressionistas penduradas nas paredes (uma das fotografias mais belas e sugestivas da série); os quartos estão recheados de posters, peluches e action figures; os jovens tocam instrumentos musicais ou sentam-se perante o computador portátil; as meias com um padrão de arco-íris migram de indivíduo para indivíduo
como uma bandeira empunhada: trilham o mesmo caminho.

A aparente tranquilidade blasé dos objectos (e sujeitos) destas fotografias transfere-se para as próprias imagens, que adquirem, assim, certa placidez. A selecção da artista e da curadora Helena Gonçalves parece ser deliberada nesse aspecto, dado que não incluem na exposição algumas das imagens que pudemos vislumbrar no livro Lisboa, mais encenadas ou construídas segundo os preceitos do retrato canónico ou da fotografia de moda. Fotografias estas que, pelas suas características formais, pelo seu poder expressivo e pela sua maior imediatez, mais facilmente seduziriam o observador.


Pelo contrário, a maioria das imagens aqui apresentadas não parece querer atrair pela beleza ou pelo virtuosismo (e sabemos bem que Pauliana é uma retratista virtuosa) — residindo aqui, na verdade, uma das suas qualidades mais cativantes. Estas fotografias são delicadas, sussurrantes, e convidam-nos, por isso, a passar tempo com elas, a frequentá-las em silêncio, procurando a entrada no tumulto que sabemos encontrar-se para além da superfície plácida. Podemos fazer esse exercício olhando as imagens afixadas nas paredes ou nos frigoríficos das casas, estudando a forma desajeitada como alguns corpos posam ou a compensação excessiva de certas miradas (um olhar fierce, como se diz em jargão queer), mas também, por exemplo, participando, cúmplices, da brincadeira em que se recria uma gravidez (‘histérica’, imaginária ou simbólica, mas certamente lúdica).

Num trabalho como Quel Pedra não se sentia, como se pressente aqui, a inaptidão da fotografia em penetrar a superfície dos corpos, porque os corpos fotografados em Cabo Verde tinham inscritos em si, como uma força, o grito, o choro, o riso, virados para fora. Em New Age Kids, porém, estamos perante uma expressão mais esfíngica da queerness: estes corpos furtam-se à leitura. Estes jovens, ainda na condição de aprendizes da decifração de si mesmos, expressam-se mais através daquilo que escondem do que daquilo que revelam. E é esta a razão pela qual este trabalho se particulariza enquanto proposta radicalmente fotográfica: convidando os seus objectos a serem também autores das fotografias, ou seja, a tornarem estes retratos também auto- retratos, Pauliana produz uma rede de imagens que documenta tanto um gesto de exibição quanto (paradoxalmente — mas não há adolescência sem paradoxo) de ocultação. É neste jogo pleno de subtilezas que se fazem estas imagens e estes seres.

Num gesto que se revelou produtivo, Pauliana convidou os seus new age kids a escreverem nos vidros da galeria, explicitando em linguagem aquilo que na natureza puramente icónica das fotografias não se pode senão intuir, isto é, o que vai dentro das suas cabeças. Sem surpresa, constatamos que a indagação ontológica é central: “Gostava só de ser”, “Serei eu real?”, “Não quero ser ou não o ser”, ou “Quem é o governo para decidir se sou ou não sou?”. Mas muito do que lá se lê assenta, ainda, num paradigma visual, de relação entre identidade e imagem — o que também não espanta em jovens que se vêem obrigados a repensar a sua aparência à luz do que entendem como a sua verdadeira essência: “Olhei-me ao espelho e não reconheci o reflexo” ou “Um corpo que não é meu”. Outras frases formulam-se como inquietações características da existência queer: “Sinto-me um ser andrógino livre”; “Comecei a fazer drag mas ainda não sei andar de saltos”, “Não sei como é que se gosta de um género”, “Encaixar num mundo binário é sufocante”. E, por fim, há frases que podiam ter sido escritas por qualquer adolescente, queer ou não (porque o particular deste trabalho não ignora a universalidade, e a identidade queer também não ganha muito em ignorá-la): “Estes mood swings chateiam-me”, “Estou a tentar aceitar-me”, “Pensamentos estúpidos”, “Tento procurar o sentido disto mas a força está a esgotar”, ou um inesperadamente fassbinderiano — espero que estes jovens tenham a oportunidade de ver os filmes de Fassbinder, porque há uma história da queerness que não pode senão consolidar e enriquecer, historicizando, as suas identidades queer — “Medo do medo”.

Das tensões entre encenação, verdade, jogo, fluidez, performatividade, ocultação, instabilidade, metamorfose, parece ser sintomática a fotografia tirada no parque de diversões. Um palhaço olha para nós, outro olha para fora de campo. Ambos riem e choram simultaneamente, porque, numa perspectiva queer do mundo, a maquilhagem nunca é do domínio do falso: ela enxerta a verdade no real. Estes seres do disfarce estão a um tempo dentro e fora da esfera social, dentro e fora do imaginário e da fantasia, simultaneamente no mundo real e na fotografia.

Maio de 2024
José Bértolo

1975. Lisboa. Vive em Lisboa e trabalha entre vários países.
Como artista e fotógrafa freelancer, faz trabalhos de fotoreportagem desde 1999 para diversos jornais e revistas portuguesas e estrangeiras, bem como exposições individuais e colectivas.
Em 2005, participou no curso de fotografia do Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística. Pertenceu ao colectivo [Kameraphoto] desde 2006 até à sua extinção em 2014. Em 2016 funda o novo colectivo “N’WE”.
Para além de livros colectivos, em 2009 foi publicado o seu primeiro livro de autora ‘VOL I’, pela editora Pierre von Kleist e ‘Caucase, Souvenirs de Voyage’, pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2011.
Realizou também diversos filmes: “Diz-se que Portugal é um bom país para se viver”, 40min, Portugal 2011; “Jovens de Atenas / Youth of Athens”, 13 min. Athens, Greece, 2012 e “Entre Nous”, 51 min. Portugal, France, 2014.

Em 2015 recebeu o prémio de Artes Visuais, do melhor trabalho fotográfico do ano, “The Passenger” pela Sociedade Portuguesa de Autores.

Em 2016 foi nomeada para o Prémio “NOVO BANCO Photo 2016″, pela série “The Behaviour of Being”, tendo apresentado “Quel Pedra” no Museu Berardo no mesmo ano.
Já fez exposições em diversos países europeus – Portugal, Espanha, Itália, Inglaterra, Alemanha, Grecia, Turquia, mas também fora da Europa, como por exemplo, EUA, China e Africa (Marrocos, Cabo Verde).
Esteve durante cinco anos representada na Galeria 3+1 Arte Contemporânea e actualmente pela Galeria das Salgadeiras, em Lisboa. Parte da sua obra pertence a coleccionadores privados e institucionais, tais como Fundação Calouste Gulbenkian, Partex, Fundação EDP e Novo Banco.