De 24 Março até 12 Abril 2023

Ponto Cego

Ana Caria Pereira e Cláudio Melo

Exposições

Espaço Triângulo

Seis movimentos para apontar sem desvendar, mantendo na sombra aquilo que desaparece sob a luz e que perde significado quando pronunciado.

I. Bastidores
[Teatro] Espaço à volta do palco que não é visto pelo público. [Figurado] Conjunto de coisas íntimas, ocultas ou secretas. Há bichos que vivem escondidos e só sabemos da sua existência pelos discretos vestígios que deixam: só lhes conhecermos os sons, os rastos ou as tocas.
Nem todos os artistas necessitam do espectáculo, nem da pompa ou da exposição.
Conheço dois que se mantiveram no silêncio dos bastidores - onde são reconhecidos e admirados - para de lá espreitarem e nos ensinarem sobre o invisível, a maravilha e a curiosidade.
É fascinante intuir a tentativa (tanto dos trabalhos, como dos autores) de apagar o seu próprio rasto.

II. Cegueira
Os miniaturistas persas e otomanos dedicavam as suas vidas
à ilustração de manuscritos, geralmente encomendados pela corte do sultão. Conhece-se o seu impulso ascético, renunciando à assinatura das obras, rejeitando a ideia de estilo individual e — sobretudo — o seu afastamento de uma obsessão ocidental pela mimesis (a imitação da realidade). Para produzir as imagens mais belas não era necessário ver, mas sim repetir: repetir durante gerações o mesmo gesto, até que a função cedesse lugar ao ritual e do parecer pudesse brotar o ser.
Na escola de Herat conta-se que era motivo de descrédito um artista chegar a uma idade avançada sem ficar cego. Para
além das longas horas de trabalho delicado e minucioso, os miniaturistas empenhavam-se em exercícios para acelerar a própria cegueira. Quando o processo tardava demasiados anos, vazavam os próprios olhos com uma agulha.
«[...] “Estou cego”, disse, “é verdade, mas guardo na memória todas as maravilhas, os mais pequenos traços de pincel: já não os vejo, mas conheço-os, a minha mão sabe-os de cor. Os meus olhos já não se distrairão com o mundo e poderei descrever a beleza que trago na memória”.»
O Meu Nome é Vermelho, Orhan Pamuk, 1998.

III. Andar em Círculos
Os cientistas do Max Planck Institute for Biological Cybernetics,
em Tübingen (Alemanha) demonstraram que as pessoas andam em círculos quando se perdem num território sem referências visuais.
Na verdade, o círculo seria sempre inevitável. Por isso, do retorno dizemos eterno.
Trata-se apenas de uma questão de escala: perdidos na floresta, rodando sobre nós próprios, ou em torno do sol. Toda a linha recta é um arco de um círculo infinito.

IV. O Único Lugar Estável do Cosmos
O pêndulo concebido por Jean Foucault, em 1851, demonstra a rotação da Terra em relação ao seu próprio eixo. De uma forma simplista podemos dizer que a Terra se move sob o pêndulo (que se suspende de um sistema quase sem atrito). Acompanhar
as suas lentas oscilações é pressentir a austera velocidade do tempo, é olhar para o único ponto fixo do universo.
Casaubon — personagem d’O Pêndulo de Foucault (1988), de Umberto Eco — irrita-se ao ver um casal que não entende a solenidade de estar perante tal aparato. Leram a folha de sala,
o texto explicativo: afastaram-se. “Miserável. Tinha por cima da cabeça o único lugar estável do cosmos. [...] Ele instruído em qualquer manual que lhe tinha ofuscado as possibilidades de se maravilhar, ela inerte, inacessível ao arrepio do infinito, ambos sem terem registado na memória a experiência
aterradora daquele seu encontro.”

V. Cinquenta e Seis Palavras Finlandesas Relacionadas com “Neve”
lumi, pyry, myräkkä, rae, räntä, tuisku, laviini, hyhmä, loska, sohjo, ahto, ahtauma, jää, kide, kohva, paanne, railo, röpelö, tökkö, iljanne, hanki, huurre, härmä, kinos, kaljama, kuura, nietos, nuoska, polanne, tykky, viti, avanto, jotos, latu, rannio, nirskua, narskua, kirskua, nitistä, narista, hölse, höty, höttyrä, höyty, judake, klossakko, komo, kieppi, mora, triimu, triivu, purku, pöykky, keli, pulveri, valli.

VI. Evereste
Edmund Hillary fotografou Tenzing Norgay no topo do Monte Evereste, a 29 de Maio de 1953.
Estes foram os primeiros a atingir o pico mais alto do mundo, onde permaneceram durante um quarto de hora, antes de iniciar uma descida sisifiana.
Maravilham-me estes detalhes: que tenham carregado uma câmara na mochila até os 8848,86 metros acima do nível do mar; que a fotografia seja absolutamente indistinta (um vulgar vulto branco sobre um frívolo fundo branco); que a descida seja mais demorada e perigosa que a escalada; que a imprensa quisesse saber qual dos dois tinha chegado lá primeiro. Como se um pudesse sem o outro.

Valter Ventura