NOTAS PARA UM TEXTO 1. Queda (é) e queda (ê) correspondem a conceitos distintos, cair no primeiro caso, ficar imóvel no segundo. Entre as duas palavras com grafia idêntica existe um hiato - o momento do impacto. O momento em que as forças saem da invisibilidade da potência e transformam a matéria: esmagar, rolar, pressionar, cortar, partir, escavar, abrir, etc. A queda como ação só existe na relação com um ou mais planos de referência que exercem sobre o corpo que cai uma força idêntica àquela que este possui no momento do embate. O potencial destrutivo da queda equivale à violência exercida sobre a matéria na sua extração e transformação. \ 2. QUEDA funda-se numa arqueologia dos gestos do trabalho naquilo que estes têm ainda de labor ou já de maquínico – segundo a distinção de Hannah Arendt entre “labor” e “trabalho”. Traços e sombras de ritmos do corpo e de ferramentas mimetizadas por objetos naturais assemblados e pela poeira negra do carvão, são descontextualizados no espaço branco e frágil do suporte. Apropriação de gestos e sons da indústria da extração mineira, na violência da “desnaturalização da natureza” dos processos naturais e humanos, numa atividade sempre designada ‘exploração’. Arendt, Hannah. A Condição Humana, Lisboa: Relógio D’Água. 2001, (1958), p.19 e p.187 \ 3. Steyerl, Hito. “In Free Fall: A Thought Experiment on Vertical Perspective”, The Wretched of the Screen, e-flux jornal, Sternberg Press, London, 2012. Hito Steyerl recorre a uma breve história do horizonte, da perspectiva e da sua falência através da aceleração do tempo e da visão para chegar ao paradigma contemporâneo da visão aérea, o que ela chama de - citando Eyal Weizman - “política da verticalidade”, como forma de aprofundar a condição pós-fundacionista do “groundlessness” (sobretudo com base na obra de Oliver Marchart, Political Thought: Political Difference in Nancy, Lefort, Badiou, and Laclau, Edinburg: Edinburg University Press, 1997). O estado de queda livre pode ser, no entanto, a construção de um novo território: “A fall toward objects without reservation, embracing a world of forces and matter, which lacks any original stability and sparks the sudden shock of the open: a freedom that is terrifying, utterly deterritorializing, and always already unknown. Falling means ruin and demise as well as love and abandon, passion and surrender, decline and catastrophe.” (p.28), um pensamento ancorado em Ernesto Laclau. \ En Caida Libre, Curadoria de João Laia, CaixaForum, Barcelona, 10 out 2019 a 9 fev 2020. \ 4. Em Heidegger, abismo (Abgrund) é um fenómeno insondável, impossível de determinar, definir, racionalizar ou tornar inteligível através de recursos conceptuais. The Cambridge Heidegger Lexicon, Cambridge University Press, 2021, pp. 9 – 11. \ 5. Mina, 4K, cor, estéreo, 11’ 10’’, 2021 Animação realizada no contexto de Residência Artística na aldeia mineira do Lousal, concelho de Grândola com o apoio Direção Geral das Artes ao projeto EXTRAI, Arte e Comunidade (2019 – 2021). Este trabalho surge da semelhança encontrada entre a radiografia pulmonar de um mineiro com silicose e a impressão a carvão de duas pedras na escombreira do Lousal. \ 6. Examine é a designação de uma série de trabalhos realizados a partir da contraposição entre o trabalho mineiro que se realiza num espaço interior – num invólucro de terra e pedra – e 30 palavras relacionadas com esta atividade iniciadas pelo prefixo ex, o qual indica um movimento para fora. A série é constituída por ampliações fotográficas em alta resolução e em negativo de impressões a carvão realizadas sobre pedras na escombreira do Lousal. \ 7. Demócrito de Abdera e o mestre, Leucipo de Mileto, criaram a teoria atomicista. Carlo Rovelli parte dessa revolução científica da antiguidade, para defender teorias granulares entre as quais a gravidade quântica. Rovelli, Carlo. A Realidade não é o que Parece, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Bertrand, 2022. Rovelli, Carlo. O Abismo Vertiginoso, trad. Silvana Corbucci, Rio de Janeiro: Objectiva, 2022. \ 8. Didi-Huberman, Georges. Génie du Non-Lieu. Air, Poussière, Empreinte, Hantise. Paris: Les Éditions de Minuit, 2001. “La poussière searait-elle l’emblème métaphysique parfait pour nos temps de destructions majeurs?” p.54 \ 9. Elevage de Poussière, Marcel Duchamp e Man Ray, 1920. Na exposição Dust, Histoires de poussière, D’après Man Ray et Marcel Duchamp, Le Bal, Paris (out 2015 a jan 2016) David Company articulou uma série de autores, vistas aéreas, imagens de medicina legal e postais, em torno desta obra enigmática. “Si cette étrange photographie, prise il y a si longtemps, marquait l'aube de l'ère moderne, dans toutes sa complexité, peut-on repenser l'histoire à partir d'une poignée de poussière?” [www.le-bal.fr] \ 10. Weizman, Ines (ed.), Dust and Data. Spector Books, Leipzig, 2019. “Dust is never a single object. Dust is an environment, the thickness of our air. Its material contentsare dry human tissue, biological and mineral substances and of course architectural residue and building matter. If we look at it close enough, we could see in it sedimented historical layers.” p.9 \ A propósito do “inconsciente fotográfico” a partir de Walter Benjamin, nomeadamente a capacidade que o dispositivo técnico possui de nos revelar imagens que escapam à percepção natural através da ampliação e do retardador, Ines Weizman conclui: “What our field can make of these sets of illuminations is the realization that we must see the object (...) as both matter and media, dust and data. We must be both collectors and psychoanalysts not of humans but of matter, a dimension that might add to discussions about object-oriented ontologies, which assign a certain subjectivity to objects.” Weizman, Ines . “Documentary Architecture, The Digital Historiographies of Modernism”, FAKTUR, Documents in Architecture, Issue 1, Fall 2018. Benjamin, Walter “A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica”, A Modernidade, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006 (1936). pp.207-241. \ 11. A exposição à sílica (pó de pedra) constitui um factor de risco na contração de doenças pulmonares. A silicose afecta a maioria dos mineiros em diferentes graus. Bernardo Ramazzini, responsável pela criação da área da Medicina do Trabalho, identificou este facto em 1713, no seu De Morbis Artificum: Diseases of Workers. Centers for Disease Control and Prevention, The National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH), USA. [https://www.cdc.gov/niosh/mining/topics/ respiratorydiseases.html] \ 12. Arendt, Hannah. A Condição Humana, Lisboa: Relógio D’Água. 2001, (1958). “não há motivo para duvidar da nossa actual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra.” p.13 \ 13. Gestos de Trabalho, é o título de um corpo de trabalho que tem a sua génese na apropriação de gestos e movimentos ligados a atividades produtivas e a uma consequente intermediação de ferramentas (precárias) produzidas a partir de objectos encontrados. [arqueologia dos gestos] Arendt, Hannah. A Condição Humana, Lisboa: Relógio D’Água. 2001, (1958). “Os Instrumentos e o Animal Laborans” pp.183-192 “Os Instrumentos e o Homo Faber” pp.192-199 \ 14. O “orgulho e o saber” são a criação de uma forma particular de expressão (linguagem) difícil de compreender mas coerente e capaz de proporcionar estabilidade às comunidades mineiras. O orgulho pode ser interpretado como uma forma silenciosa de luta de classes. Filmes como Proud Valley de Pen Tennyson (1940) e How Green Was My Valley de John Ford (1941) abordam a natureza complexa das relações entre classes. \ Margolis, Eric. “Picturing labor: A visual ethnography of the coal mine labor process”, Visual Sociology, 13:2, 5-35, 1998. Rodrigues, Paula. “Mineiros ou minados : trajectórias biográficas e sistema paternalista no lugar do Lousal”. Trabalhos de Antropologia e Etnologia - Ano 81, vol. 39, fascs. 3-4, 103-141,1999. Rodrigues, Paula. Dissertação Mestrado: Espaço Social e Modos de Vida em Contexto de Crise: o Lugar das Minas do Lousal. Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, 1998. \ 15. Em Forensic Architecture: Violence at the Threshold of Detectability, Eyal Weizman introduz o tema da arquitectura forense com a famosa disputa legal entre David Irving, um conhecido negacionista do Holocausto e a historiadora Deborah Lipstadt, e de como o primeiro tenta desautorizar os testemunhos humanos através de provas materiais ou da sua ausência. Weizman problematiza a centralidade que as provas – incluíndo análises à emulsão química de fotografias aéreas – adquiriram na viragem para o novo milénio. Weizman, Eyal. Forensic Architecture: Violence at the Threshold of Detectability, New York: Zone Books, 2017. Fuller and Weizman, Investigative Aesthetics: Conflicts and Commons in the Politics of Truth. London, New York: Verso, 2021. \ 16. Dean, Tacita. “And he fell into the Sea”, Bas Jan Ader: Please don’t leave me, Museum Boijmans Van Beuningen, 2006, pp.29 – 30. “Icarus, blinded by the elation of his ascent, failed and fell: fell to fail. His was a journey up that came down. Crowhurst’s was a journey along: flat, doomed and sorrily human. His fall was wretched, unimagined, unannounced and wholly practical. But for Bas Jan Ader to fall was to make a work of art. Whatever we believe or whatever we imagine, on a deep deep level, not to have fallen would have meant failure.” p.30 \ Tacita Dean, obras selecionadas: Disappearance at Sea, 16mm, 13’, color, sound, 1996; Disappearance at Sea, artist book, 1997; Disappearance at Sea II, 16mm, 4’, color, sound, 1997 Chalk Fall, chalk on blackboard, 9 panels, 365,8x 731,5cm (overall) \ 17. Bas Jan Ader (1942-1975), obras selecionadas: Fall I, 16mm, 24’’, 1970; Fall II, 16mm, 19’’, 1970; Broken Fall (organic), 16mm, 1’44’’, 1971; Nightfall, 16mm, 4’16’’, 1971; Broken Fall (geometric), 16mm, 1’49’’, 1971. [www.basjanader.com] \ 18. Deleuze, Gilles. “Whitman”, Critica e Clinica, trad. Pedro Eloy Duarte, Lisboa: Edições Século XXI, 2000, pp.80-86. A propósito da literatura americana: “O mundo como conjunto de partes heterogéneas: patchwork infinito, ou muro ilimitado de pedras soltas (...) O mundo como amostragem: as amostras («espécimes») são precisamente singularidades, partes assinaláveis e não totalizáveis que se desprendem de uma série de ordinários. (...) A lei da fragmentação. Os fragmentos são grãos, «granulações». Selecionar os casos singulares e as cenas menores é mais importante que qualquer consideração de conjunto.” pp.81.82. Whitman, Walt. Specimen Days e Collect, Dover Publications: New York, 1995 (1883). \ 19. Algumas entradas da lista de verbos de Richard Serra: “Rolar. Agarrar. Arranhar. Lançar. Espalhar. Ouvir. Modular. Esconder. Marcar. Pressionar. Esmagar. Abrir. Borrifar. Largar. Soltar. Coletar. Derramar. Mapear. Forçar. Sistematizar. Apagar. Tensão. Gravidade. Entropia. Inércia. Carbonizado. Contexto. Lugar." Richard Serra, Verb List, 1967, grafite sobre papel, 2 folhas (25,4x21,6cm), The Museum of Modern Art, New York. \ 20. Queda II resulta da ação de pressionar uma folha sobre uma ave encontrada (morta e seca) cobrindo-a de pó de carvão, numa relação indexical e processual com a imagem fotográfica e a moldagem. A ave jaz agora no subsolo, a máscara na superfície. Didi-Huberman, Georges. La Ressemblance par Contact. Archéologie, Anachronisme et Modernité de L’Impreinte. Paris: Les Éditions de Minuit. 2008 \ 21. Deleuze, Gilles. “Peindre les Forces”, Francis Bacon: Logique de la Sensation, Paris: Éditions du Seuil, 2002 (1981). pp.57– 63. \ Medium Earth, Otolith Group, HD Video – Installation, 41’ 08’’, Colour, Stereo, 16:9, 2013. “Conceived as notes toward the making of a future film, Medium Earth attunes itself to the seismic psyche of the state of California.(...) Commissioned by REDCAT and complimented by a series of public programs on the geopoetic practices of prediction and premonition.” [http://otolithgroup.org] \ 22. James, Catherine. Falling for Gravity. Invisible Forces in Contemporary Art. Oxford, New York: Peter Lang. 2018. \ 23. Stalker, Andrej Tarkovsky, 1979. Filme rodado em Tallinn, com argumento de Arkady and Boris Strugatsky adaptado de Roadside Picnic (1972) dos mesmos autores. A “Zona” é um espaço vedado onde as leis da física não se aplicam na integralidade e onde permanecem vestígios de atividade extraterrestre. \ 24. “Still, while the film may not be about the gulag, it is haunted by memories of the camps, from the overlap of vocabulary ("Zona", "the meat grinder") to the Stalker's Zek-style shaved head. The turnaround, as the film-maker Chris Marker has pointed out, is that here freedom is found within the wire.” Geoff Dyer, “Danger! High-radiation arthouse!”, The Guardian, 6 Feb 2009 [www.theguardian.com/film/2009/feb/06/andrei-tarkovsky-stalker-russia-gulags-chernobyl] \ 25. Victor Herman (1915-1985), norte americano descendente de pai Ucraniano, passou 18 anos preso nos Gulag depois de bater o recorde do mundo do salto com paraquedas em 1934 e de ter recusado a nacionalidade soviética para onde havia sido enviado com os pais pela Ford Motor Company. Em 1979 publicou a autobiografia Coming out of the ice.
Rogério Taveira vive e trabalha em Lisboa. Explora a especificidade dos lugares como uma hipótese multi-camada utilizando desenho, som, vídeo e fotografia. É licenciado em Arquitetura e doutorado em Belas-Artes. Ensina no Departamento de Arte Multimédia da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.