O estalar das folhas revela a nossa posição a um observador silencioso. Que olhos se encontram além do visível?
Um transecto é um instrumento semelhante a longa fita métrica que é usado pelos geólogos para medir a paisagem, definindo nela uma série de linhas rectas que permitem observar, medir, e registar dados em áreas específicas. Nas pinturas, filmes e instalações de Pedro Vaz, os papéis do observador e do observado invertem-se. Nas obras deste artista, o transecto gera percursos lineares que são interrompidos e impossibilitados pela própria não-linearidade da natureza. A floresta rejeita a definição ao metabolizar o seu próprio ser.
A observação é um elemento fundamental do processo analítico, tanto para os cientistas como para Vaz; no entanto, os seus respectivos métodos existem em contraste formal. A separação entre a galeria de arte e o nosso ambiente constitui o primeiro desafio estético. O cubo branco exclui a visualidade intensa da floresta, riquíssima em pormenores, vibrante de aranhas, lesmas, animais microscópicos e lodos sob rochas que viramos. Este mundo caótico sob os nossos pés entra agora na galeria por meio do gesto instalador de Vaz, que coloca no lugar do soalho a morbidez da natureza – cuja fragrância é activada pelos nossos passos.
Logo à nossa frente, duas paredes formam um ângulo de 90 graus. Aqui temos as linhas rectas, desconhecidas na natureza. Rodeando-nos como um panorama, cinco novas pinturas apresentam as técnicas características de Vaz. O artista remove camadas de tinta de modo a expor secções de tela, usando esse acto de remoção para corporalizar o desaparecimento. Tal como a chuva e o tempo desgastam o flanco da montanha, Vaz reproduz a constante redistribuição da paisagem, que se vai alterando dia a dia. Antes de sequer poder secar completamente, a tinta é transformada num espectro invisível que gera uma expressão explosiva de ramos partidos, árvores imaturas, raios de sol e uma eminência gutural por meio de pinceladas geométricas.
Estas composições têm origem numa série de fotografias tiradas pelo artista enquanto caminhava ao longo de um transecto. Apresentam árvores, segmentos de casca castanha, folhas secas e ramos tenros, alicerces de uma rara geometria. As pinturas procuram envolver-nos, sublinhando a nossa falta de horizonte – há terra mas não há céu; somos completamente consumidos pelo sistema digestivo da floresta. Estas imagens opõem-se às ideias estabelecidas da paisagem como algo eterno, imóvel e mensurável. Falam de uma floresta viva e concreta, que se mexe, cresce e morre. A montanha vai-se desgastando enquanto andamos sobre ela, desfazendo-se enquanto deixamos vestígios da nossa presença, como pequenas perturbações da matéria.
A incompatibilidade entre os instrumentos científicos e a rapidez metabólica da floresta liga-se ao conceito da duração de Henri Bergson. Este filósofo considerava que, ao contrário do tempo linear e científico, a experiência humana é uma variação imensurável que encurta ou alonga o tempo de acordo com a nossa atenção e com o conceito de intensidade. Embora o tempo científico fosse claramente útil enquanto medida prática, Bergson achava-o incompatível com a psique humana. Vaz olha para a montanha em termos de escalas de tempo geológicas que se erguem e vão desgastando, entrando por vezes em erupção – e sobre as quais matéria viva se acumula, uma vez reunidas as condições necessárias –, activadas pelo élan vital. Tanto para Bergson como para Vaz, as medidas científicas são algo que é útil mas também absurdo.
Na nova peça de vídeo “outro ser” (2023), figuras do nosso imaginário surgem na floresta escurecida. Visto através de uma lente desfocada, o solo da floresta parece derramar-se em tonalidades manchadas que criam um terreno confuso e denso. A abertura está focada numa pequena secção, que ocasionalmente nos permite ver a casca das árvores através de olhos que se diriam não humanos. Esta caminhada lenta pelo matagal, quase às escuras, ocorre durante um fugaz período crepuscular – logo antes de o sol nascer ou nos breves momentos depois de ele se pôr. Sob esta luz inquietante, uma figura humana flutua pelo ecrã – uma aparição, uma espécie de espírito. Este corpo projecta energia radiante sobre a matéria caída. Paus, folhas, cascas de bolota, ramos e terra formam o esqueleto da floresta, uma montanha viva cujas folhas se tornam no solo de onde todos nascemos. Como um espírito que sai de um corpo, um serafim de luz sai do enquadramento, deixando para trás a matéria do solo. O espírito é a aglomeração imaterial deste ser (possivelmente um espírito da floresta, da montanha ou do ar), um sujeito separado da esfera física que regressa à sua função cíclica como nutriente, estrutura celular e núcleo endurecido. Este espectro dispersa-se como uma ténue neblina pelo horizonte invisível, dissipando-se pela floresta que há muito o abriga e alimenta.
A floresta é um ciclo eterno de desenvolvimento e decomposição, um ambiente onde a morte é um pré-requisito essencial da vida e cuja alma habita a amálgama material de ramos arbóreos que estalam sob os nossos pés. Até esta matéria supostamente morta fervilha de fungos, microbiota e pequenos seres que constantemente produzem o grande mistério que é o solo. São como órgãos, orelhas e olhos – a floresta envolve-nos e contém-nos como uma entidade viva e concreta, que sente e vê a nossa presença com os seus olhos múltiplos, focados no seu próprio sistema metabólico dentro do qual nos encontramos – e neste ventre da baleia, descobrimos mistério, mas também paz.
Àngels Miralda
Pedro Vaz nasceu em 1977 em Maputo, Moçambique e agora vive e trabalha em Lisboa.
Licenciou-se na Universidade de Belas Artes, Lisboa, Portugal em 2006. O seu trabalho baseia-se nas temáticas da natureza e da paisagem, trabalhando maioritariamente em pintura e video-instalação. O contato pessoal com ambientes reais é fundamental para sua prática e esses projetos geralmente incluem um tour. Seu processo alterna entre mergulhar na natureza por meio de expedições e experimentar as qualidades abstrativas que a memória possui quando trabalha no estúdio.
Em 2021 apresentou a exposição individual Num único acorde, no CAB - Centro de Arte Caja de Burgos, Burgos, Espanha. Participou nas seguintes exposições colectivas: Loops.Expanded, 2021, no MNAC - Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa, Portugal; LA TORMENTA, 2020, Centro Cultural Teopanzolco, Cuernavaca, México; O Olhar Divergente, 2019, Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas, Açores, Portugal; Depois do choque, os trópicos, 2018, Galeria Luísa Strina, São Paulo, Brasil; Second Nature, 2018, The Kreeger Museum, Washington D.C., EUA; Second Nature, 2016, MAAT - Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Lisboa, Portugal; Link, Ano Zero - Bienal de Coimbra, 2015, Coimbra, Portugal. O seu trabalho encontra-se em coleções de museus, no CAM - Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal; Fundação de Serralves, no Porto, Portugal; MAAT - Fundação EDP, Lisboa, Portugal; Centro de Arte Caja de Burgos - CAB, Burgos, Espanha, entre outros.