Num arco cronológico que abarca trinta e oito anos de produção, a exposição Canto representa um regresso de Helena Almeida a uma casa que ajudou a fundar: a Diferença.
O trânsito entre a pintura, o desenho e a fotografia é, nesta artista, leitmotif para um corpo de trabalho que se distingue pela coerência e intransigência conceptual a partir do qual foi erigido.
Canto reflete sobre a definição de espaço na obra de Helena Almeida, onde uma simples linha pode definir o espaço existencial por excelência (o atelier) que determina o seu posicionamento em reiteradas presenças equívocas porque distantes da simples auto-representação.
Em 1978 a artista afirmava: “Tentar abrir um espaço, sair custe o que custar, é um sentimento muito forte nos meus trabalhos. Passou a ser uma questão de condenação e de sobrevivência. Sinto-me quase sempre no limiar onde esses dois espaços se encontram, esperam, hesitam e vibram.” Imagine-se uma folha de papel com um simples risco negro na horizontal. Na perceção convencionada, esse risco remeterá invariavelmente para uma linha de horizonte, assim convergindo para a tradição da representação paisagística ocidental.
Na perceção dirigida de Helena Almeida, esse risco será, sempre, a definição de um espaço interior. A estruturação básica de um espaço tridimensional é, nesta artista, o que lhe permite a movimentação do corpo enquanto entidade conceptual que supera as territorializações das disciplinas artísticas, nomeadamente a pintura e a escultura. Ou seja, no desenho e na fotografia remete-se para essas realidades, num movimento da linha ou do corpo que se inscreve decididamente nos interstícios desejados e interpelativos desses mesmos limites.
“Como tudo o que faço é dominantemente corporal, tive que acautelar muitas coisas e aprender comigo toda a linguagem do corpo, do meu corpo, porque era através dele que eu queria, e quero, exprimir-me. O inclinar da cabeça, o levantar de um pé, o esticar de um braço, tudo tem um significado que não pode ser deixado ao acaso. O meu corpo é como um baú, um recipiente de emoções, de lembranças, que as pessoas (e eu também) podem encher, esvaziar, transferir para aquele corpo.” Nesta resposta a Maria João Seixas numa entrevista de 2004, Helena Almeida sintetiza o modo como encarava o seu corpo e as coreografias associadas a um ímpeto universalista de obra aberta ao devir das interpretações. Aí reside, em grande parte, o assombro destes trabalhos: a espessura existencial que se compõe demomentos de um certo humor e outros de uma gravidade exasperante.
Quando, no âmbito do Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, convidei a Helena a participar na exposição A Experiência do Lugar que comissariei com o saudoso Paulo Cunha e Silva, acabei por concretizar um desafio que sabia ser de difícil consecução: retirar a artista da sua zona de conforto com o intuito de produzir obra em diálogo com um espaço específico. A Aula de Química da antiga Faculdade de Ciências do Porto foi o local para uma série de fotografias que adotou o título da exposição. Como escrevi no catálogo, “As dez imagens que criou retratam uma literal experiência do lugar: são fotografias nas quais um corpo vestido de negro vai desenvolvendo uma coreografia misteriosa, como que procurando uma fusão integral com o espaço e com um inquietante pigmento, negro também, que parece indicar a transmutabilidade de todos os corpos.”
Na verdade, já nas Telas Habitadas se antevia esse desígnio basilar, ou seja, onde a representação do corpo e o meio para o fazer se fundissem numa entidade que acima de tudo afirma o poder da arte se distinguir como gesto civilizacional diferenciador.
O espaço de encontro entre esta obra incontornável no contexto da arte contemporânea nacional e internacional e o espetador é um presente em contínua mutação e renovação, o que aqui se celebra em justa homenagem no lugar que ajudou a construir como utopia concretizada.
Miguel von Hafe Pérez
Filha do escultor Leopoldo de Almeida (1898-1975), formou-se em Pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa em 1955. Em 1961 participa na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian e em 1964 obtém uma bolsa de estudo, prosseguindo os seus estudos em Paris. Na capital francesa contacta com a arte abstracta, sendo a sua obra deste período marcada pelos jogos de inter-relação entre espaços interiores e exteriores. Regressada a Portugal, expõe individualmente pela primeira vez em 1967 (Galeria Buchholz, Lisboa), apresentando composições geométricas e abstratizantes nas quais questiona o espaço pictórico e explora os limites físicos da pintura, problemática que viria a ser desenvolvida na sua obra futura. A partir do final da década de 1960 passa a centrar-se na intensa reflexão sobre a auto-representação e sobre as relações de tensão entre o corpo, o espaço e a obra: o seu próprio corpo é então encarado enquanto objecto e suporte da obra, temática que a partir de 1975 é desenvolvida através da manipulação de meios como a pintura, o desenho, a gravura, a instalação, a fotografia e o vídeo. Artista de intensa matriz conceptual, a sua rigorosa e original investigação plástica granjeou-lhe desde a década de 1970 um forte reconhecimento nacional e internacional, destacando-se a representação de Portugal nas Bienais de São Paulo (1979), Veneza (1982 e 2004) e Sidney (2004) e as exposições antológicas em Santiago de Compostela e em Badajoz (2000), no Centro Cultural de Belém (2004), em Serralves (2005) e em Madrid (2008).