É tudo sobre contar histórias. 'Digital' é a última canção que Ian Curtis nos deixa em voz. É a última entrada em palco dos Joy Division a 2 de maio de 1980 no High Hall da Universidade de Birmingham em Inglaterra. Sabemos, com quase total certeza, que 'Digital' é a última música que traz a público. Suspeitamos, porque o concerto fica gravado na mesa de mistura e posteriormente é masterizado e difundido em 'Still' (1981) na primeira coletânea póstuma da banda de Manchester. 'Digital' torna-se por estes rumores, por estas informações atónitas com que acreditamos escrever a verdade do passado, na última música em palco. Torna-se não só numa canção, mas no rumor corpóreo que nela se encapsula desse momento. É objeto enquanto canção e simultaneamente lugar poético enquanto rumor. 'Day in, Day out' é o refrão de 'Digital', repetido incessantemente pela voz de Curtis, não a frase, mas a sua forma em voz, não apenas a potência da sua tradução no contexto da produção de texto de Ian Curtis, mas sobretudo no que nos resta do tempo da canção e da forma como a ouvimos. Nem o objeto, nem o lugar poético da canção de Curtis estão no espaço desta exposição, e não sendo isto uma total verdade, a existir, encontra-se no contraciclo em que toda a produção artística de João Campolargo Teixeira se desenha. Na existência anímica da canção, no interior e exterior da exposição, a mesma não deixa de ser o veículo e o título centrado num desnorte, convocando novamente o encontro com essa esfera do rumor que jaz na existência da sua prática artística. Os trabalhos de João Campolargo Teixeira não são trabalhos de luz na esfera do minimalismo, nem sisões isoladas no universo conceptual, são polissémicos, simultaneamente objetos isolados, simultaneamente objetos de um cenário poético. Ou seja, são simultaneamente o mesmo que desenhamos aqui sobre a imagem de 'Digital'. Induzem, suspeitam, introduzem-se no espaço como corpos extemporâneos, são premissas sempre de uma história, instrução, interpelação. A sua mimésis é a de revelar a natureza de conto pela sua lente mais astigmática. A ideia do rumor é ainda mais vibrante neste nosso encontro com este tipo de objetos, sobretudo na potência poética em que se carregam. O objeto final é um recurso último (uma infortuna necessidade) por vezes em corpo de som, outras em corpo de luz. São vocábulos oriundos do desenho, mas proferidos pela necessidade de criar um outro veículo linguístico para uma conversa maior. Os cinco objetos que escolhe não formam um texto, ocupam o espaço em simultâneo da Galeria Diferença, dentro e fora. 'Nada' não é o nada que nunca chegamos a encontrar na imagem vazia da película de Maurice Lemaître. Torna-se numa escapatória como uma falsa imagem vinda de uma falsa luz, suspensa no mesmo niilismo cético com que Lemaître apresenta a sua imagem em movimento. 'Entre a espada e a parede', a néon rosa-pálido, tem como vestíbulo a natureza da oralidade popular, e 'Não ouvi bem o que disseste', a branco igualmente pálido, tem como vestíbulo um dos poemas de Alexandre O’neil no livro 'Poemas de divertimento com sinais ortográficos' de 1960. Um, encadeia o indomável da história da boca popular, o outro, encadeia um vocábulo maior que o poema. Ambos, não chegam a representar estas referências, até porque elas não são do lugar da escrita. Uma do lugar da boca, outra do lugar da mão. (Se um historiador tivesse de escolher uma matéria para iniciar a escrita da história oral e da história da mão, certamente optaria pela luz e pelo som, ou vice-versa. Pela impermanência de ambas, pela mutabilidade de ambas, pela incorporalidade de ambas). Cai no erro de tentar encontrar a instrução de João Dixo na sua publicação 'Sobre histórias da minha terra – 30 trabalhos gratuitos como matéria-prima para que você faça obras de arte', lançada em 1974, e que João Campolargo Teixeira teve como partida para o desenho da sua escultura. Cai no erro. A exposição podia terminar e começar no binómio de 'Bodies of water called sound' (2025) por ser um duplo na sua integridade. Um duplo linguístico e um duplo de imagem. 'Sound' como estreito na sua tradução, como som na sua tradução. De Tânger vê-se Espanha, de Tânger ouve-se Espanha. Não tenho a certeza. É tudo sobre contar histórias. Umas sobre as outras, em simultâneo. Lembro outras. Dentro e fora da galeria. A história que Bruce Nauman levou à Bienal de Arte de Veneza em 2009. Intitulou-a de 'Days', e ouvimos de catorze placas brancas altifalantes a gravação de várias pessoas a proferirem os dias da semana em loop. A história que David Lynch cola na terceira e última parte de 'Mulholland Drive (2001), no teatro de veludo vermelho', onde Betty e Rita assistem à peça de teatro onde num dos momentos finais Rebekah Del Rio canta. A cantora que parece estar a atuar ao vivo, morre em palco, a voz continua, em loop. O som gravado não é ao vivo, o que vemos não é verdade, diz-nos o apresentador. Betty e Rita choram. Os dias repetem-se, a obra por vezes é a gravação, outras vezes o momento em que a gravamos. As frases, os dias da semana e as canções. Diante destes objetos, caímos no erro de nunca conseguirmos deixar de produzir significados.
João Terras
João Campolargo Teixeira (Vila Real, 1994). Vive e trabalha em Lisboa. Licenciou-se em Escultura (2016) e concluiu o mestrado em Arte e Multimédia (2021) na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Participa regularmente em diversas exposições, destacam-se: XIV Simpósio Internacional de Arte do Feital, Feital (2016); O caminho que corre pelo silêncio com curadoria de José Maia e João Terras, Espaço Mira, Porto (2019); Ágora - Bienal de Arte Contemporânea da Maia com curadoria de José Maia, Maia (2021); Lovers com curadoria de Bárbara Bulhão e Fábio Colaço, Zaratan - Arte Contemporânea, Lisboa (2022); Havemos de ir ao futuro com curadoria de Helena Mendes Pereira e Filipa Leal, Zet Gallery, Braga (2022); Perguntas à Ficção com curadoria de Ana Cristina Cachola, MACE 15 Anos - Aqui Somos Rede, Elvas (2022); E Quando com curadoria de Felícia Teixeira e João Brojo, Maus Hábitos - Teatro Municipal de Vila Real, Vila Real (2022); Hammer Time, Zaratan - Arte Contemporânea, Lisboa (2022); Festival Micro Clima, SMUP, Parede (2023); Perspetiva 24 com curadoria de Helena Mendes Pereira e João Ribas, Fórum Cultural de Cerveira, Vila Nova de Cerveira (2023); Hammer Time, Zaratan - Arte Contemporânea, Lisboa (2023). A Liberdade ainda não chega em co-autoria com Felícia Teixeira e João Brojo, com curadoria de José Maia, Espaço Mira, Porto (2024). O futuro está em marcha em co-autoria com Felícia Teixeira e João Brojo, Projecto Pontes, Fundão (2024).; Random, Azan Contemporary art, Lisboa (2024). Tem obra construída na sede das Águas do Norte, S.A., em Vila Real (2018), no Fórum da Maia, Câmara Municipal da Maia (2021) e no campus DSTGroup, em Braga (2022). Está representado em coleções privadas e públicas, destacam-se: Coleção Águas do Norte, S.A.; Coleção de Audiovisual Balaclava Noir; Coleção Câmara Municipal da Maia; Coleção João Luís Traça; Coleção DSTGroup.