“Num curioso movimento dialéctico, Margarida Garcia junta a Gebrauchsmusik de Besseler e a Josefina de Kafka na sua nova exposição na Galeria Diferença, em Lisboa. Esta última no sentido em que a sua estratégia artística é uma espécie de actualização no século XXI da rata-artista de Kafka. A actualização reside sobretudo na subtil crítica feminista que, na minha opinião, é a mais inteligente, a mais radical e a mais subversiva possível nos dias de hoje. É preciso dizer aqui que esta crítica não se expressa numa camada afirmativa de significado (o cliché do dito tipicamente feminino da artista), mas antes evita qualquer expressão positiva e é encarnada pela própria forma artística, criada, por assim dizer, através da auto-sabotagem ou de uma encenação específica.”
“A inquietação culmina no políptico exposto, composto por cinco obras que Garcia intitula “Balaclava”. À primeira vista, as obras parecem de facto máscaras, feitas de pele de réptil. Se olharmos com mais atenção, verificamos que são apenas animais inteiros cuja pele foi arrancada, mas, mesmo com a melhor das intenções, não é possível deixar de ver aqueles rostos ou máscaras humanas.
Será isto parte da sua estratégia de arte menor? Como se Garcia quisesse dizer: tal como a mulher, o animal não existe, está sempre incluído no quadro simbólico dos homens. A única coisa que resta é um animal, na medida em que não parece coincidir com esta redução simbólica, um animal impossível. Não é essa a experiência das balaclavas? O animal só pode ser visto através das gravuras antropomorfizantes imaginárias. A arte de Garcia não mostra, portanto, nada além deste bumerangue imaginário; a sua arte não é mais do que um diagrama do impasse.”
“Margarida Garcia opera como a Josefina de Kafka, na medida em que não pode ser compreendida estruturalmente como artista. Como uma batoteira, dá o que não tem a um público que não o quer. No contexto da exposição, poderíamos acrescentar: na medida em que a sua arte é a própria estratégia para exibir uma dimensão radicalmente estranha que torna a sua obra unfuckable. Como Garcia não tem à sua disposição, tal como Josefina uma população de ratos que não a reconheceria, mas a compreenderia, desenvolve uma estratégia artística para um povo que está ausente, servindo-se do inevitável mal-entendido e da incompreensão fundamental. Garcia produz uma arte intrinsecamente esvaziada e em processo de esvaziamento, que mostra imagens das quais, ao mesmo tempo, não há escapatória possível. Com esta exposição, ela confirma a tese radical de Lacan de que “a Mulher não existe”, de que não escapa em circunstância alguma à fantasia masculina. A sua singularização, um notável Fremdkörper artístico, é o resultado do espelhamento, no visitante, de uma encenação que a exposição testemunha. Onde está Garcia em tudo isto, ou a sua suposta arte? São ambos a encenação do seu próprio desaparecimento naquilo que nos mostram.”
Extractos de “Männerphantasien ou a Diagramática do Impasse”, um ensaio de Björn Schmelzer que será apresentado na Galeria Diferença no sábado, 21 de junho de 2025, 17h, seguido de uma conversa com a artista e público (na presença da artista).
------------------------------------------------------------
EN
"In a curious dialectical move, Margarida Garcia brings together Besseler’s Gebrauchsmusik and Kafka’s Josephine in her new exhibition at Galeria Diferença in Lisbon, the latter in the sense that her artistic strategy is a kind of 21st century upgrade of that of Kafka’s artist mouse. The upgrade lies above all in the subtle feminist critique that, in my opinion, is the smartest, most radical and most subversive that is possible today. It should be said here that this critique does not express itself in an affirmative layer of meaning (the cliché of the so-called typically feminine of the artist) but rather avoids any positive expression and is embodied by the artistic form itself, which is created, as it were, through self-sabotage or a particular staging.”
"The disquiet culminates in the exhibited polyptych consisting of five works that Garcia gives the title “Balaclava”. At first glance, the works indeed look like masks, made of reptile skins. If you look more closely, you will see that they are just whole animals from which the skin has been peeled off, but with the best will in the world it is not possible to un-see those human faces or masks. Is this part of her minor art strategy? As if Garcia wants to say: just as the woman, the animal does not exist, it is always included in the symbolic framework of men. The only thing that remains is an animal insofar as it does not seem to coincide with that symbolic reduction, an impossible animal. Isn't this the experience of the balaclavas? The animal can only be seen through the imaginary anthropomorphizing prints. Garcia's art therefore shows nothing but that imaginary boomerang, her art is nothing else than a diagrammatic of the impasse."
"Margarida Garcia operates like Kafka’s Josephine insofar as she cannot be understood structurally as an artist. As a trickster she gives what she does not have to an audience that does not want it. In the context of the exhibition, we could add: insofar as her art is the strategy itself to display a radically uncanny dimension that makes her work unfuckable. Because Garcia does not have a mouse population at her disposal like Josephine, that would not recognize her but would understand her, she develops an artistic strategy for a people that is missing, making use of inevitable misunderstanding and fundamental incomprehension. Garcia produces an art that is intrinsically hollowed out and hollowing out, showing images from which at the same time no escape is possible. With this exhibition she confirms Lacan's radical thesis that “(the) Woman does not exist”, that she does not escape the male fantasy in any way. Her singularization, a remarkable artistic Fremdkörper, is the result of the mirroring on the visitor of a staging that the exhibition bears witness to. Where is Garcia in all this, or her so-called art? They are the staging of their own disappearance in what they show us.”
Extracts from “Männerphantasien or the Diagrammatics of the Impasse”, an essay by Björn Schmelzer that will be presented in Galeria Diferença on Saturday 21 June 2025, 17h, followed by an artist talk and conversation with the public (in presence of the artist).
Imagens cedidas por: Margarida Garcia
Margarida Garcia, (n. Lisboa,1977), fez o mestrado na Parsons, New School University em Nova Iorque e desde 2001 tem exposto em Barcelona, Nova Iorque, Utrecht, Bruxelas, São Francisco entre outros. Paralelamente desenvolve trabalho no campo da música experimental.
Esta exposição dá continuação à sua última individual em Lisboa "Blind Man's Buff" em 2022-2023 na Appleton Square.