Saxa Loquuntur – As pedras falam. Nelas lemos o futuro.
Mobilizada por Sigmund Freud na conferência “Etiologia da histeria” em 1896 ao explorar a relevância do modelo arqueológico na investigação da psique humana, a expressão latina Saxa Loquuntur encontra-se também associada, no mundo romano, à possibilidade de predizer o futuro. Esse, como afirma a bruxa Erichto na Pharsalia de Lucano (61 d.C. circa): “[...] tellus nobis aetherque chaosque aequoraque et campi Rhodopeaque saxa loquentur” [a terra e o éter, o abisso e o mar, os campos e as pedras de Rodopé [o] desvendarão para nós”].
As linhas de tensão entre a observação de passados múltiplos, interligados, aninhados uns nos outros, e a necessidade de imaginar futuros – e entre materialidades heterogéneas que insistem em dialogar, em se tocar e se misturar apesar de serem aparentemente estrangeiras e não falarem a mesma língua – atravessam também a exposição de Maura Grimaldi na Galeria Diferença, que destas histórias arcaicas e modernas toma o seu título.
Pedra a pedra, fragmento após fragmento, este projeto construiu- se a partir de uma residência do artista no espaço Utopiana, em Genebra, em 2021, que deu o impulso inicial para uma investigação acerca do universo da geologia – e dos seus encontros políticos, e poéticos, com outros saberes e campos de conhecimento – e continuou a desenvolver-se, mais recentemente, no contexto da residência Pó de Vir a Ser, em Évora, em 2024.
O filme Nebulosa (2024), elo magnético de uma constelação de corpos díspares que esta exposição materializa, sugere um vocabulário que pode ser utilizado para percorrer este universo em equilíbrio frágil entre passado e futuro, realidade e ficção. É um vocabulário singular que nasce do encontro, e por vezes do enxerto, entre uma pedra misteriosa, verde, gris e amarela – inspirada no plastiglomerado, uma nova formação rochosa que integra resíduos plásticos – e o corpo humano. Que significa tornar-se pedra, para uma mulher de idade, e para a filha que cuida dela? Que acontece quando a sua subjetividade se esfarela como uma rocha macia?
E que tipo de corpos mais do que humanos poderão nascer dos encontros linguísticos, afetivos, hápticos, sexuais entre pele humana e pedra, entre a mão e a escultura por ela moldada? Que tipo de futuros são prefigurados por essas novas conexões? E onde estão as bruxas que as possam decifrar?
No livro Elucidário (2024), outro polo que estrutura o campo desta exposição, a pedra ininteligível, sob análise, e o plug anal de mármore manipulados pelas personagens de Nebulosa são substituídos metaforicamente por blocos erráticos, ou rochas capazes de migrar entre territórios diferentes. Aqui, termos científicos do campo da geologia, com ressonâncias semânticas que os ligam às esferas corpórea, amorosa ou sexual, deslizam para o lado da literatura, onde são reimaginados por um conjunto de poetas e escritoras.
Neste sentido, esta exposição individual, a primeira de Maura Grimaldi em Portugal, é também uma coletiva, porque o trabalho do artista, que investiga os tecidos relacionais heterogéneos, humanos e não humanos, que compõem a nossa vida intelectual, política e afetiva, também mobiliza a relação, a partilha e a troca como metodologia, configurando e ensaiando, ao mesmo tempo, outras economias possíveis na forma de fazer arte juntes.
Giulia Lamoni, Junho 2024
Apoios: República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes Produzido no âmbito do programa da Fundación ”la Caixa”, Apoio à criação’22 Produção Associação Pó de Vir a Ser - Departamento de Escultura em Pedra - Centro Cultural de Évora
Co-criação de: Beatriz Lemos, Bruna Beber, Bruna Castro, Felipe Zenicola, Filipa Cordeiro, Fernando Roussado, Flávia Santos, Flora Lahuerta, Giulia Lamoni, Joana Egypto, Josefa Pereira, Julia de Souza, Marcela Vieira, Mariana Varela, Marilda Pereira, Natália Mendonça, Olivia Borges, Patrícia Black, Ritó Natálio, Ska Batista, Victor Gonçalves.
Agradecimentos especiais à: Aline Belfort, Amandi Kaibo, Anastasia Lukovnikova, BAL - Baltican Analog Lab, Beatriz Lemos, Bibi Dória, Bruna Beber, Bruna Castro, Bruno Claro, Carolina Martins, Carla Cruz, Espaço Piscina, Espaço da Penha, Felipe Zenicola, Fernanda Avelar Santos, Fernando Roussado, Flávia Santos, Flora Lahuerta, Filipa Oliveira, Fórum Dança, Gabriela Giffoni, Giulia Lamoni, Ian Capillé, Isadora Alves, Ieva Balode, Joana Egypto, Josefa Pereira, Julia de Souza, Mafalda Sustelo, Marcela Vieira, Mariana Mata Passos, Mariana Varela, Marilda Pereira, Marine Sigaut, Marta Mestre, Meus Salgados Brasil, Natália Loyola, Natália Mendonça, Olívia Borges, Pastelaria Amaral, Patrícia Black, Pedro Fazenda, Renata Bueno, Ritó Natálio, Sintija Andersone, Ska Batista, Thiago Carrapatoso, Victor Gonçalves, Vitor George, Vyvra de Concepción Covello.
Maura Grimaldi (Brasil, 1988) transita entre a pesquisa acadêmica e a prática artística cuja obra aborda majoritariamente temas relacionados às tecnologias obsoletas a partir da experimentação com dispositivos óticos diversos para refletir sobre a economia da atenção e as formas de subjetivação na contemporaneidade.
Entre suas principais exibições e projetos destacam-se o prémio ibérico Apoio a Criação’22 da Fundação La Caixa (2022/2024), a residência artística em Genebra no âmbito da bolsa oferecida pelo Pro Helvetia / COINCIDENCIA South America / Swiss Art Council (Suiça, 2021), a exposição individual “The work appering in your memory is not mine” na Galeria Virgílio (2018); o programa de acompanhamento crítico PIMASP coordenado por Adriano Pedrosa e Tobi Maier no MASP (Brasil, 2016/2017); a residência HANGAR em Lisboa (Portugal, 2017); PIVÔ Pesquisa (Brasil, 2017); a VI Bolsa Pampulha no Museu de Arte da Pampulha em Belo Horizonte (Brasil, 2016); a XI Residência Artística do Red Bull Station (Brasil, 2015); a residência artística no Centro de Arte Jardim Canadá - JACA em Belo horizonte (Brasil, 2014); a exposição A vanguarda está em ti na ocasião dos 55 Anos do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (Portugal, 2014); a residência artística na École Supérieure des beaux-arts TALM-Tours (França, 2013); I Mostra do Programa de Fotografia 2012/2013 no Centro Cultural São Paulo (2012) e a exposição Esquinas realizada no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. (2012).