A obra de Paulo Lourenço deve entender-se sempre a partir do seu forte vínculo à gravura e em especial à serigrafia. E quando os seus trabalhos menos parecem serigrafia é exactamente quando estão mais processualmente imbuídos dela. Os processos da tecnologia da reprodutibilidade são absorvidos em dimensões conceptuais que invertem certos princípios tradicionais enquanto produzem insólitos efeitos formais. É o caso das obras desta exposição que dão alguma continuidade à exposição O lugar onde...(Galeria Passevite, 2017), versão branca do que agora se assume na negritude brilhante fornecida por uma camada de pó de grafite.
Embora já com anterior percurso na gravura, temos acompanhado mais a obra artística de Paulo Lourenço desde que as suas obras assumiram tanto uma dimensão única como espacial e objectual. Lembramo-nos de uma primeira fase em que as impressões serigráficas se começaram a fazer sobre placas acrílicas, jogando com a sobreposição das camadas, na sua opacidade ou transparências (por vezes com peças apoiadas em mesas de luz). Cedo assumiram corpo de objecto tridimensional nesse jogo das placas acrílicas e se exploraram como dispositivos instalativos (Embrechado, 2009; Between Words, 2012, O Resgate da Europa, 2013; Mapa de um só lugar, 2016). Mais recentemente, Paulo Lourenço começou a explorar a impressão saturada de camadas produzindo relevos (série Res Gallicea, 2013;Rhinoceros Mundi, 2014, Vender a Alma ao Diabo, 2017; série Biblioteca, 2019) efectuando ainda outras experiências como o uso espectral de impressão com parafina (Frozen, 2015). É na linha desta exploração da saturação de impressões num mesmo lugar que se prepara a exposição Memórias de uma (H)era. No ciclo de obras desta exposição duas dimensões temporais estruturantes se destacam. Uma nasce do desenvolvimento da Hera, da sua expansão ao longo das superfícies. Este motivo vegetal, que o artista observou e imediatamente fotografou num dos espaços da cantina da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa (tudo em situação circunstancial, efémera e quotidiana), motivou formalmente estas imagens que se espalham ao longo do campo visual.
Este jogo fitomórfico, lembrando ramificações de caules, talos ou raízes, remete muito directamente para o uso filosófico da noção de rizomapor Deleuze e Guattari. Um dos princípios deste conceito é a sua conexão, em devir e heterogénea, que virtualiza ligações em rede a partir de qualquer ponto possível, numa trama contínua. Esta continuidade abre outra dimensão de constante fluxo, sem princípio nem fim. A dimensão formal destas obras aproximam-se das noções de all overdas obras de Jackson Pollock, mas enquanto aqui eram fluxos e palpitações texturais não diferenciadas a partir de redes de dripping’s, aqui são direcções, espalhamentos orientados que abrem diferenças de tratamento nas superfícies. Também em ambos ficamos com uma ideia de continuum, de que os fluxos de ramificações em filigrana continuam para além do enquadramento, mas em Paulo Lourenço o corte é mais abrupto, exactamente devido à orientação dessas ramificações no seu próprio espargimento.
Daí também que em vez de leves palpitações ou oscilações de uma mesma membrana textural, há outro jogo entre vazios e cheios, por esta ordem. O vazio ou campo neutro é a base desse campo que recebe as impressões que se vão acumulando na superfície definindo essa rede de ligações. Em peculiar exceção a descobrir ao olhar, numa das obras o vazio ficou anulado com uma impressão fantasma que o artista abandonara, por descolamento da matriz serigráfica que corrompera a precisão processual. Após um esforço de apagamento falhado, que não conseguira anular a rasto dessa marca, como um palimpsesto irrevogável, este ofereceu-se como uma nova nota expressiva.
É relevante como a textura se torna a definição da superfície como um topos- ou, como dizem Deleuze e Guattari relativamente ao rizoma,definindo territórios relativamente estabilizados. Esta consciência sempre existiu no trabalho de Paulo Lourenço, com vários trabalhos anteriores em torno de topografias, de mapas urbanos (Entangled Lines, 2013; Crossing Lines, 2013-2014; Linhas Cruzadas, 2015; Mapa de um só lugar, 2016; ), que no seu caso se articula com a sua consciência das marcas de impressão que definem traços, como camadas de memórias na superfície, tornando as superfícies uma espécie de territórios.
É esta consciência que nos remete para a outra dimensão temporal que é a da própria impressão, que aqui acontece na saturada insistência de camadas de tinta. São as camadas de impressão, como finos planos recortados de curvas de nível, que se vão sobrepondo como estrados construindo a densidade dos relevos. Mais subtil, mas também mais decisiva ao longo do trabalho de Paulo Lourenço, esta temporalidade de sucessivas impressões define as camadas de impressão de tinta que fornecem o relevo. Este é um tempo simultaneamente mais tecnológico e repetitivo, mais lento e pesado (embora nos forneça dimensões subtis de camadas finas que definem o relevo destes corpos de imagem). Como resultado não temos imagens impressas, mas uma imagem que resulta de uma sobreposição de impressões. Também não temos uma imagem multiplicada, mas apenas uma única imagem que absorve todas as impressões.
Tal obriga a um trabalho de várias matrizes cada vez com menos informação, que vão sobrepondo camadas mais reduzidas sobre as outras, cada uma delas impressa dezenas de vezes (num total de impressões que chegam a cerca de 1200 numa mesma obra). A impressão é um gesto de insistente repetição numa articulação de processos cíclicos de gravar sobre uma mesma superfície, enquanto retorno ao mesmo no mesmo lugar. A impressão insistente sobre o mesmo lugar, em vez de disseminar em reprodutibilidade, insiste e funda um único. Ela faz agir uma fatal adição que marca a diferença. Não se trata de uma repetição do mesmo, mas algo que vai fundado o único. É novamente Deleuze que nos fala desse retorno do jogo da repetição como algo que funda a diferença. E de novo admitimos uma das conjugações dorizoma, que recusa a base ontológica do «é» de algo predeterminado, para assumir a adição do «e» de cada ramificação em fluxo do rizoma, aqui colocado numa repetição menos formal e mais processual. No interior da quantificação das impressões há a qualidade única de cada acto, de cada repetição, de cada investimento sobre o mesmoque se funda nessa acção. A semelhança por contacto(expressão de Didi-Huberman) de cada impressão funda a diferença na constituição de um ser único.
É isso que faz nascer o relevo e que objectualiza a imagem. A imagem torna-se a memória da impressão num mesmo topos, para subverter esse aplanamento e lhe fornecer uma corporalidade por sucessão de marcas que actuam como estratos, tanto visuais como mnemónicos. É essa insistência da impressão serigráfica que dá corpo à impressão e é já enquanto corpo que a imagem se oferece enquanto relevo. É exactamente quando a tecnologia de serigrafia deixa de se reconhecer, não por desvios, mas por excesso de si concentrada sobre uma mesma superfície, que objectualizamos uma imagem única afirmando a sua presença, na consciência do espaço e da luz envolventes, e as suas potencialidades instalativas.
Fernando Rosa Dias, Julho 2021
PAULO LOURENÇO nasceu em Lisboa a 1965 onde vive e trabalha.
Em 2016, concluiu o Mestrado em Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Desde 2001 participou em mais de cem Exposições Colectivas em Portugal, Brasil, África do Sul, França, Espanha, Itália, Dinamarca, Holanda, República Popular da China, Polónia e Japão.
EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS 2016-Lisboa, (Galeria Diferença) “Brancos, de um só lugar” 2015-Proença-a-Nova, (Galeria Comendador João Martins) “Encruzilhadas”, Pintura/Gravura. 2014-Lisboa, (Galeria Abraço), “Crossing Lines”, Pintura. 2009-Proença-a-Nova, (Galeria Comendador João Martins) “Crossover”, Gravura. Lisboa, (Galeria Diferença) “Genius Loci”, Pintura. 2008-Lisboa, (Associação de Gravura Água Forte) “Ambientes-Feéricos”, Gravura. 2006-Évora, (Galeria Teoartis) “Desigual”, Gravura. Lisboa, (Galeria Diferença) “Entre Variáveis”, Gravura.
PRÉMIOS 2015 Espanha, Cáceres, 1º Premio da Bienal Iberoamericana de Obra Gráfica Ciudad de Cáceres. 2009 Beja, Menção Honrosa, (Museu Jorge Vieira), XVII Concurso/Exposição Galeria Aberta. 2007 Lisboa, Medalha de Bronze do I Salão de Artes Plásticas de Portugal. Beja, Menção Honrosa, (Museu Jorge Vieira), XV Concurso/Exposição Galeria Aberta. 2004 Évora, Prémio Exposição Individual do 4º Festival Internacional de Évora – Bienal Internacional.
REPRESENTAÇÔES Holanda, Amesterdão, Vereniging Voor Originele Grafiek, (VOG). Portugal, Lisboa, Biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, Museu Arqueológico do Carmo. República Popular da China, Macau, Museu das Ofertas sobre a Transferência de Soberania de Macau. Japão, Okinawa, Sakimi Art Museum. Representado em colecções privadas em Portugal, Brasil, Espanha, Holanda, Polonia e Japão.