DE 04 SETEMBRO ATÉ 02 OUTUBRO 2024

Tânia Moreira David

Sombras dos Dias Vermelhos

Exposições

Espaço Quadrado

Sombras dos dias vermelhos faz-nos mergulhar num universo íntimo envolto numa
temporalidade dilatada que nos aflora a pele. Contudo, a imersão neste mundo matérico nunca
é total; perdura, mesmo que ínfima, uma distância irredutível, imposta pela dimensão
fantasmática e virtual que o atravessa. A peça compõe-se de cinco momentos diferenciados em
que entrevemos lugares sem nunca os podermos apreender completamente; as imagens dão a
ver as suas qualidades afectivas e materiais — modulações de cor, ritmos, texturas, brilhos e
espelhamentos —, mas não nos permitem discernir as suas coordenadas. Na duração dos planos
fulguram pequenos acontecimentos que pressentimos pela sua manifestação sonora no campo
envolvente da imagem. Uma fonte de luz recorta incisivamente o negro profundo um espaço
pictórico; a certo ponto, escutamos o som de passos, anunciando uma presença humana, a única
que nos será dado vislumbrar na peça. Observamos, a seguir, a passagem de um vulto que se
movimenta em direcção ao fundo, dissolvendo-se no negro; a figura paira no espaço, deixa
intocadas as plantas com que se cruza, revelando a sua condição espectral. Num outro momento,
o ressoar de motores invade os nossos corpos, enquanto arranca da sua condição feérica os
cintilantes reflexos dourados e prateados que quase tocamos com o olhar.
Na duração de Sombras dos dias vermelhos vislumbram-se lugares, objectos e pequenos
acontecimentos nas imagens de reflexos e sombras que os habitam. Precisamos a tessitura do
pano verde que flutua na imagem, velando o reflexo transfigurado de uma janela e do exterior
além dela, onde se entrevê uma parreira. As sombras desta parreira, por sua vez, pairam sobre o
pano verde translúcido. Objectos e reflexos coexistem e trocam-se numa circularidade infinita.
Ouvimos uma pancada seca fora do enquadramento visual e, um instante depois, surge uma bola
de bilhar vermelha cuja transparência permite entrever o reflexo da janela ao mesmo tempo que
a sua superfície esférica reflecte, numa outra escala, essa mesma janela. Na peça, o real e o seu
reflexo perseguem-se continuamente, remetem um ao outro sucessivamente, tornam-se direito
e avesso perfeitamente reversíveis. Num plano aproximado de um espelho de água, observamos
a fronteira, linha móvel mas sempre definida, entre a água que oscila sobre o azulejo negro e o
fluído que se movimenta de forma delirante, como se sob o efeito de forças de contracção e
expansão; um meio fluido em que germinam sucessivas formas que nunca se chegam a actualizar
— entrevemos talvez a emergência de caudas de pavão fragmentadas, vislumbramos a
deterioração da película cinematográfica, supomos mesmo a aparição de fantasmas, ou tão
somente o reflexo movente de árvores despidas. Há nesta imagem algo que excede o real, a
potência de um outro real em formação. A coalescência do real e do imaginário, do actual e do
virtual é intrínseca às imagens visuais e sonoras que compõem a peça. Elas são a expressão do movimento sempre inacabado de reconstituição da experiência vivida, do trabalho da
rememoração, feito da trama da recordação e da urdidura do esquecimento, usando as palavras
de Walter Benjamin. Um processo que nos faz dar um «salto de tigre» no passado para de lá
soltar figuras e acontecimentos que podem incrustar-se no agora, ainda que como virtualidade,
ao mesmo tempo que nos faz procurar a localização corporal da afecção, aproximando de nós as
coisas do mundo.

Joana Braga

Tânia Moreira David é artista visual e cineasta. Licenciou-se em arquitectura e obteve o mestrado em projecto cinematográfico pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2016).
Entre os projectos de sua autoria, La Petite Maison, an Architectural Seduction, ganhou o prémio de melhor filme no Festival InShadow 2012 (Lisboa) e foi exibido em numerosos festivais e mostras internacionais, entre os quais 'Architecture Visions - Erratic language in architectural narratives' (2011), no Maxxi Museum em Roma, e esteve presente na Roca London Gallery, na exposição colectiva 'Soak Steam and Dream: Reinventing Bathing Culture' (2016); a instalação de vídeo Phenomena (2012), foi o resultado de uma residência artística financiada pelo Arts Council England. O vídeo Vórtice foi exibido no Museu da Imagem e do Som de Santa Catarina, em Florianópolis, no Brasil, no âmbito da 'Strangloscope - Mostra Internacional de Áudio, Vídeo/Filme e Performance Experimental’ (2017). Nesse ano também, foi concebida a instalação Mapa Imaginário incluída no percurso-instalação ‘Cartografia em Movimento’, co-produção Teatro Maria Matos. Entre 2017 e 2022, criou as instalações vídeo Habitantes, Found Movement e Arcturus (as duas primeiras presentes em 2021 na exposição 'Matéria para Escavação Futura', na Trienal de Arquitectura de Lisboa, co-produção Teatro do Bairro Alto), integradas nos percursos performativos de Joana Braga, Partituras para Ir, A Cada Passo uma Constelação e Os Passos em Volta. A instalação Sombras dos Dias Vermelhos, o seu projecto expositivo mais recente, esteve patente entre 2 e 16 de Março de 2023 no espaço do INSTITUTO, no Porto.
Actualmente encontra-se a desenvolver o projecto O Futuro do Esquecimento, com apoio da DGArtes, e inauguração prevista para Novembro de 2024.