De 22 Junho até 27 Julho 2019

Ana Vidigal

Sal nos olhos

Exposições

Espaço Triângulo

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
Permanecer.

Eugénio de Andrade


Ana Vidigal é uma contadora de histórias. Relatos vários de afinidade e afeição, memórias que transportam consigo o traço da artista, que reflectem os seus ideais. Muitas sobre o tempo, outras sobre os tempos em nós. Conexões de pessoas, lugares, cheiros e momentos. Como é natural para quem possui tais habilidades, os enredos cruzam-se e abrem caminho a novas narrativas dentro de um enquadramento maior.

Mas é mais que isso: são histórias necessárias. São a primeira pessoa de quem viu a sua liberdade chegar por meio de uma revolução. Ana fala-me de tempos que não vivi. De um Portugal tradicionalista depois de anos de ditadura e uma guerra colonial a dar os primeiros passos numa eventual abertura, com novos mundos e direitos por reivindicar. Tempos onde se tomou certas liberdades como garantias e acreditou em dias melhores. Tempos de “Primaveras”, cada com as suas reverberações. E, nesta medida, haverá arquivo que nos chegue como a história oral? A proximidade possibilita a empatia e, a empatia confere proximidade. E tal é importante interiorizar quando dizem que a história “repete-se”, “repete-se sempre” [Hegel]. Tal é urgente porque ainda temos longas trilhas por percorrer, e outras por fazer permanecer.

As obras de Vidigal também são contadoras de histórias. Não apenas no plano formal, através da colagem, pintura e da plasticidade inerente à manualidade da sua metodologia mas, sobretudo, pela narrativa que cada elemento contêm e o torna tão pessoal. Eles encerram em si fragmentos, lembranças do passado, objectos herdados, dados ou encontrados, recortes ou capas de jornais, cartoons, páginas de livros. Um processo meticuloso de adição de signos e cruzamento de enredos, à semelhança do atelier onde trabalha: espaço vivo de acumulações. Pequenos recipientes, arquivos, gavetas e gavetinhas em divisões grandes ou maiores.
Lugares de acondicionamentos, repositório de instantes. Também o espaço de trabalho são ideias, histórias, em potência. Prontas a ser (re)descobertas.

Enfim, as acumulações, os recortes, as histórias, as caixas: tudo peças de um puzzle que se atraem, e que a artista recria habilmente em novas linguagens, gestos, obras. Num processo de constante revelação e omissão, quer pelo uso da palavra como da imagem muita vezes rasurada ou sobreposta. Uma praxis que traz ao de cima um passado que se mistura com o presente e projecta no futuro. Como o fluxo da vida, em permanente transformação, em constante implicância, numa cadência de relações com sentidos imprevistos.

Sal nos olhos, exposição individual na galeria Diferença, é fruto de tudo isso. É reflexo de um olhar atento, que arde de tanto ver. Como o sal arde nos olhos. As obras apresentadas resgatam, naturalmente, as inquietações da artista numa dimensão política dominante, potencializada por títulos cuidadosamente engendrados. Por um lado períodos de liberalização política e a preponderância da juventude nestes processos, por outro a banalização da posse de armas, criminalidade e influência do seu mercado. A “sujidade” ou precariedade nas raquetes de ping pong ironiza uma nação em incerteza. Toda uma cultura sedutora do falso, do simulado, do plástico ou descartável. Uma amálgama de referências como os dias que vivemos, que convidam a analisar temas de uma dimensão emergente, a sair da apatia. Principalmente porque nem tudo está assim tão “harmonioso”.

Considerar se viveremos na iminência de um presente cujas incertezas ecoam divergências esquecidas do passado e memórias abortadas de futuro. Escolher quais as histórias que queremos contar. Ter essa liberdade e ter outras “narrativas”, mais perspectivas, novas vozes e formas de traduzir o mundo.

Carolina Trigueiros, 2019

Ana Vidigal nasceu em Lisboa em 1960. 

Formou-se em Pintura da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e foi Bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, entre 1985 e 1987. [4] Seguiu-se um estágio na Casa das Artes de Tavira com o pintor Bartolomeu Cid. 

No final da década de 90, foi nomeada artista residente do Museu de Arte Contemporânea do Funchal, durante 1998 e 1999.

Em 1999, a AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte) ofereceu ao Brasil uma colecção inspirada na carta de Pero Vaz de Caminha, composta por quadros de onze artistas diferentes, sendo Ana Vidigal um deles. 

A sua obra tem integrado várias iniciativas promovidas por entidades públicas, nomeadamente o Instituto Português do Património Arquitectónico que a convidou a criar uma chávena de porcelana para o projecto Um Artista, um Monumento.[7] Integra também o conjunto de artistas convidados, pelo Metropolitano de Lisboa, a criarem paneis de azulejos para as estações de metro de Lisboa, sendo dela os que estão nas estações de Alvalade e Alfornelos.
Obras suas podem ser encontradas em colecções privadas e públicas.